sábado, 14 de junho de 2008

NINGUÉM CHORE SOZINHO


A vida é bonita como uma flor. Viver é bonito que nem um passarinho. É do jeito dos olhos e do olhar. Colorido, preto e branco como se quer. Pedra e pau, algodão e fumaça. Cabriola e requebro, rodopio e ponto de chegada. Vai e volta. E por ser ela, nem vai nem volta. Estanca nas emoções que são os confeitos da própria vida.
A vida é o menino mijando no fundo do quintal, o caramelo na boca, a sacristia, o perdão do copo da cachaça, a mulher nua, o homem de gravata, o peito empinado, o seio de mamar, a lágrima e o véu, o coração e o pio, a pena e a asa, mesmo assim, um passo, mergulho sem fundo. A vida é vez. E toda vez é vez. Nem que seja pelo avesso. Que frente e costa têm cor. Nos arco-íris de fora e de dentro.
A vida é doce que nem lágrima salgada. É um rio no rosto que espera. Um caminho de bocas e de silêncios. Vestido rendado e calça curta. Véspera e luz. Nos arredores do tempo, os canteiros se enchem de flores e pingam espinhos, que flor e espinhos, que flor e espinho são da mesma oração. A vida é bonita como uma flor eterna em cada pétala que cai. E se debruça no chão, o orgasmo da fome.
Pois a vida é fome e pétala, é rosa e canteiro, parto e aborto, explosão e desmaio, o cisco no canto do olho, a cadeira de rodas, a espingarda, o gatilho das esperanças, a esmola e a mão cheia. O pinico e o prato, o pé, o sapato, o cabelo e a queda, o baile e o sereno, o vestido e o nu. Os dedos desencontrados que enganam a magia das mãos...
Por tudo isso me calo. Perco a voz. Esqueço o silencio. Que a voz é vôo. Canto as minhas alegrias e me deito nos meus recantos. Todos eles cheios de estradas e de mim mesmo. Canto a vida, o vai-e-volta das cavernas, a árvore e o tronco, a minha ilusão das catedrais e dos morcegos, o vôo surdo das asas noturnas, o roçar das pernas flutuantes nas beiras da noite. Por tudo isso eu não me calo. Adejo, flutuo, nos morcegos e nas andorinhas que misturam as imagens das criaturas.
Por tudo isso eu calo e não me calo. A dor do sapato se muda na dor da estrada, pois a vida é bonita que nem uma flor. Estes passos dos dedos, das unhas, das estrias, dos riachos da alma, pedaços de tudo que escorrem para dentro de mim. É vez de ver, de escutar, de sombra e luz. A luz debaixo dos meus pés, que os pés se multiplicam nas veredas, gosto dos caminhos maiores.
Por isso, a vida é maior. Pois pergunto ao tronco e à folha, a razão de cada um, pauta e escala musical, onde verdadeiramente estou, onde verdadeiramente estamos. Talvez na pétala ou no espinho, no tronco ou na folha, no tronco da moeda, no espelho de todas as imagens. De resto, que ninguém chore sozinho.

In memoriam

‘Robério Maracajá’

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