Vi os homens do alto da cruz, mas não vi o demónio.
O demónio dir-me-ia que a morte é vital, mas nada ouvi, aqui,
nesta paixão, sendo que apurei o ouvido e nem o eco das montanhas
do Moab ouvi, só ouvi como é doce a paixão e como esta crucificação
rende preito à esperança dos homens, tal como, de mim para comigo,
disse tantas vezes, e à multidão dos homens repeti.
Há coisas que não ouço e que não vejo, o demónio não vi, eis o que sei,
ele, se me visse nesta cruz, por certo choraria, pelos seus mil olhos
eu sei que choraria, pelos seus mil demónios no olhar, enquanto
chega a morte para que tudo se perfaça sobre o sofrimento,
a esponja do vinagre, a lança no flanco, os gritos das mulheres,
o grave galope dos cavalos a reter a multidão na sua esperança aflita.
Vi os homens do alto da cruz, mas não vi o demónio, essa luz
tão diferente, esse asco assinalável, mas não menos amistoso
pela demoníaca presença se aqui tivesse vindo, sendo que não me negaria
como outros me negaram, ah, não, não me negaria o que me persegue,
diria quem eu sou e qual o meu nome, e como os maltrapilhos desta terra
exercem pelo seu nome o nome que eu tenho, todos quantos
só pela minha dor rejubilam e se podem salvar.
Não vi aqui o demónio, nem vi Deus, vi o cálice e vi o abandono,
e vi a terra toda ensanguentada e Adonai ausente, ausente em parte incerta,
enquanto as mulheres e os homens se enlaçavam,
e foi a manhã inicial,
e a coroa de espinhos perfurava as minhas têmporas,
e os homens e as mulheres se enlaçavam,
e foi a noite inicial,
e por amor se uniram e geraram filhos,
enquanto sobre o Gólgota ecoavam os oboés e as trompas.
[in Sobre as Imagens, de Amadeu Baptista, inédito]
terça-feira, 1 de abril de 2008
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