Pela rua deserta, as derradeiras luzes da tarde iam-se sujeitando às sombras, abrigo natural da miséria humana. O dia findava igual a qualquer outro, menos pelas horas mumificadas no imenso mausoléu urbano e muito mais pelo conteúdo da vida repetida por igual a cada instante.
Olhando do alto, a cidade parece um rio noturno, acesso e preguiçoso, quase estagnado, fluindo em redor de si mesmo, as luzes dos carros flutuando no leito das avenidas feito uma boiada morta vagando correnteza abaixo.
Do meu mirante oculto, posso ver a cidade flagelada e exangue, desfalecendo extenuada, depois de uma semana de trabalho e dor.
O homem da carroça faz estalar o chicote por cima da cabeça do seu cavalo derrotado na batalha do dia. Não carrega nada, senão a carga de sempre: o desalento das coisas perdidas. Parece mais um coche fúnebre; dos tempos em que as esperanças mortas eram conduzidas assim, para sepultar em casa...
Pela calçada, arrastando-se lentamente, uma mulher colada à parede abraça o conteúdo de um embrulho envolto em lençol. Não preciso adivinhar que carrega o filho ao colo, à moda dos nordestinos cruzando o próprio corpo sobre a dor parida, num abraço severino que transfixa e lancina.
Ela reduz mais ainda o passo e finda parando junto ao portão entreaberto de uma das derradeiras residências da rua movimentada. Primeiro, certifica-se de que ninguém a observa. Depois, como uma sobra desgarrada de outras assombrações humanas, desliza para dentro do jardim e invade o terraço da casa.
Junto à porta, deposita a sua própria tragédia pessoal, alisa as dobras do paninho ordinário, por falta de adeus melhor e desaparece no meio do mistério de onde se esgueirou.
Fica o outro enigma agasalhado naquela coberta miserável de chitão.
Destino traçado para essa criança enjeitada não pode haver. É mais um Moisés salvo das águas estagnadas da cidade que flui indolente a caminho do mar.
Não posso saber o resto da historia. Se a casa recolheu a criança ou se a enjeitou também. Mas posso perceber que a tragédia não acaba aqui. O eitor pode perfeitamente escolher um final que convelha aos dias que correm.
Não me cobrem o destino que daria o cronista para arrematar o enredo desta opereta suburbana, cujos personagens jamais saberei quem são. Amanha, quando passar por aqui outra vez, a caminho do trabalho, este jardim meio arruinado de dálias desfiguradas pela fuligem e de petúnias amareladas pelo descaso não me dirão absolutamente nada.
O portão de ferro entreaberto não mostrara mais do que canteiros abandonados e flores descarnadas.
Nenhuma noticia do Moisés suburbano atirado à soleira da própria sorte, num fim de tarde qualquer.
Nenhuma lembrança da mulher envolta em sombras e olhar esgazeado, feito personagem das telas de Flávio Tavares em transe de assombração.
‘Luiz Augusto Crispim’
quarta-feira, 16 de abril de 2008
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