sexta-feira, 9 de maio de 2008

OS ESCRITORES

Longe vão os tempos em que eu achava que ser escritor era habitar a casa e a vida, dividido entre o concreto dos dias e a perturbaçao da escrita. Hoje, ser escritor não é habitar uma casa nem gerir uma vida, mas sim viver num perpetuo “road show” através do mundo. Conforme vim a descobrir mais tarde, por acaso ou distração, nas basta escrever um livro e depois ficar-se livre – para qualquer outra coisa, inclusive outro livro. Se o livro corre mal, morre-se; se corre bem, fica-se escravo para sempre. Escravo de leitores, do serviço pós-vendas, da confraria instalada, de nós próprios. Não há liberdade alguma em pôr ponto final num livro: pelo contrario, é o principio de outra dependência. Se correu mal, é imprescindível fazer outro que corra bem; se correu bem, é obrigatório outro que corra melhor. Porque, como explica a escritora espanhola Rosa Montero, no seu fabuloso “A Louca da Casa”, espécie de tratado da escrita e da condição de escritor: o sucesso e o fiasco. E ambas são dificilmente geríveis por seres normais que, como todos os outros, olhem para aquilo que fazem apenas como uma das coisas mais que são importantes na sua vida, mas que não é a vida toda, a única razão, condição, identidade.
Tendo-me acontecido o primeiro dos dois males (mesmo assim, suponho que o mal menor), tenho andado, de há uns três anos para cá, em bolandas literárias por esse “petit monde” onde desfila o “jet-set” internacional literário e onde eu ainda gozo da vantagem de ser um neófito desconhecido que os grandes desse mundo confundem frequentemente com o motorista ou o interprete que lhes está reservado. Assim, olho sem ser visto, observo sem ser notado, estou de fora estando dentro. Até ao momento em que algum jornalista mais bem documentado me descobre a careca ou em que algum editor mais esforçado me empurra para a frente, estou em posição privilegiada para retirar o melhor da experiência, observando os “colegas” famosos.
Ah, e se tenho visto famosos do mundo literário! Até já os dividi em vários tipos: há o tipo imperial, os que deslizam em pose de imperadores romanos, a cabeça levantada, a olhar além, um séqüito caminhando dois respeitosos pssos atrás. O Paulo Coelho ou o José Saramago, por exemplo. Há o tipo “escritor moderno-com-sex-appel”, vestido de preto dos pés à cabeça, flutuantes gestos de mão, pose “monchalante” na mesa das conferencias ou frente `s câmaras de televisão, um grupo de meninas sempre à mão, disponíveis para “room serviçe” do famoso “autor”. Há o tipo exótico, integrante da “quota étnica” como as escritoras de países muçulmanos, libertas do “tchador”, e cujo miserável destino é o de passarem a vida inteira a responder a perguntas, não sobre os seus livros, mas sobre o “tchador”. Há as jovens promessas-prodígio, oriundas de países emergentes ou submergentes, que adotam a pose do escritor envergonhado “peço desculpa pelo meu talento, mas eu sou muito tímido”. E há o escritor sem sucesso nem talento, mas a quem uma boa rede domestica de influencias permite fazer-se financiar pelos contribuintes pátrios para editar o seu último livro em Vilnius, Lituânia, onde um subsidiado e iludido editor local irá conseguir vender 100 exemplares, esforçadamente.
Ao longo destes últimos três anos, tenho-me cruzado com todos eles, todos os tipos, os grandes do mundo literário, por essas paragens de culto, das quais a mítica Feira de Frankfurt, espécie de feira de gado de escritores, é a mais emblemática e seguramente a mais deprimente. Entre todos os avistados ou aproximados, o que mais me impressionou foi o celebrado, o devastador, o esmagador, Salman Rushdie, destinado por todos os oráculos a ser um próximo Premio Nobel. Confesso que até sou um admirador do homem, como leitor. Mas, à medida que nos vamos encontrando por aí – no Brasil, em Frankfurt, em Itália -, e que ele me vai olhando cada vez com mais desconfiança (serei um terrorista disfarçado de ocidental e encarregue de executar a “fatwa”?), vou-me divertindo cada vez mais a observá-lo e à sua curiosidade. Fisicamente, o tipo é sinistro, verdadeiramente satânico, como nos “Versículos” parece o resultado do cruzamento de um gato com um demônio numa noite de trovoada em Madastra. Como se isso não fosse suficiente para chamar as atenções, faz-se acompanhar por uma mulher linda de morrer, uns trinta anos mais nova e uns trinta centímetros mais alta, cujas mini-saias começam aí pela altura dos ombros dele usualmente escoltada por um harém particular – uma coisa também bastante comum entre as mulheres dos gênios da literatura moderna. Ele, o Salman (permitam-me esta familiaridade recente), vai atirando – enquanto se desloca, senta ou posa – umas migalhas de fama para o ar e para o chão, que os políticos, os editores, os organizadores e os jornalistas locais recolhem, como se fossem perolas do Rajasthan. No resto, é um serzinho antipático, arrogante, insuportável de vaidade. Só um grande povo, como os ingleses, se disporia a gastar uma fortuna, anos fio, para proteger esta pérola preciosa dos delírios de “sharia” do tresloucado “ayatollah” Khomeiny (que Alá o guarde em paz!).
Inevitavelmente, é fora da galeria dos mais famosos que se encontram os escritores que são também pessoas normais, simpáticas, acessíveis, com quem é possível ter um agradável almoço ou ficar à noite numa varanda a beber um copo e a ouvir histórias – não as histórias deles próprios e do seu sucesso, mas verdadeiras histórias, contadas por escritores. A minha curta experiência, que não é ilustrativa de coisa alguma, fez-me concluir, até à data, que é sobretudo entre as mulheres e as latino-americanas que está a maioria deles. A proximidade lingüística e cultural seguramente que ajuda, assim como o facto de ainda acharem que é mais importante conhecerem – o sitio onde estão e as pessoas à volta – do que serem conhecidas.
Pessoalmente, acho que há defeitos piores do que a vaidade, sobretudo a vaidade legítima. A vaidade causa sobretudo danos aos próprios, impedindo-os de estarem atentos ao que os rodeia, de conhecerem as pessoas que interessam e não apenas as que os adulam, de verem o mundo como ele é e não em plano superior, de cima para baixo. Mas num escritor, a vaidade é particularmente contraditória com a sua condição, pois que essa passa pela faculdade de ser capaz de olhar o mundo e dele dar testemunho – o que não é possível quando o mais que se vê à frente é a si próprio. Um grande escritor disse-me um dia isto: “Tudo o que tenho para dizer esta nos meus livros. O resto é aquilo que vejo e só quero que me deixem ver em paz!”.

‘Miguel Sousa Tavares – In: Expresso de 24 de Junho de 2006’

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