quarta-feira, 14 de maio de 2008

RELATO DE UMA VIRGEM EM SEX SHOPS

Quando a virgindade é um estado de alma, desflorá-la obriga a ponderação - abrir brechas nos redutos de inocência envolve custos e benefícios. Num pós-lua-de-mel em Paris, comi, pela primeira vez, couscous magrebinos. Fosse pelas unhas do funcionário que tomei por encardidas, ou pela decadência no Bairro de Saint-Denis, vomitei couscous, sobremesa e nojo. Atravessei, sonâmbula e enjoada, as ruas sem sono de uma Paris de néons e farrapos que excluíra nas passagens anteriores. Do Cancan e da ambiência retro do Moulin Rouge, somente conhecia a La Goulue pintada por Toulouse-Lautrec. Lembro a perfeição dos corpos e gestos das bailarinas dali e do Lido; confirmaram a feminilidade sedutora como questão de atitude. Visita de estudo cujos ensinamentos a menina-mulher gravou. Perdida foi a virgindade em couscous e na venda das peças de carne penduradas em saltos.

Vagabundei no Bairro Vermelho em Amsterdão onde as montras mais as lojas de brinquedos adultos pasmam a carneirada turística. Emocionalmente foi inócuo, após o tumulto do espírito por cada degrau subido na casa de Anne Frank. Aqui, rasguei a virgindade na percepção vívida do Holocausto. Anos e desflorações posteriores, a minha alma, ou o que dela fizer a vez, sangrou na aldeia mártir de Oradour-sur-Glane. A memória do cerco das SS permanece incrustada no interior da igreja que testemunhou, impotente, a morte de 452 mulheres e crianças. Nos celeiros, 190 homens foram fuzilados por dois pelotões nazis. Sobra o esqueleto carbonizado de um vilarejo rural.

Talvez pelos abanões experimentados nalgumas perdas de virgindade, a cautela filtra a infinita curiosidade pelo novo. Um exterior inusitado, a lembrar comércio londrino, deteve os passos. Sólida madeira protegida com cera, montra recolhida e porta campainhada. Fosse pela curiosidade ou pela companhia, rodaram as dobradiças. No interior, há almíscar no aroma, bom gosto e silêncio. As madeiras continuam. Alinhadas nas prateleiras, as vitualhas que, presumo, costumadas. Embasbaquei perante os milagres consentidos pelos polímeros e a diversidade das fontes de prazer humanas. Embeveci com os corpetes e a originalidade das meias ditas de vidro. Deplorei a imagem das bonecas vazias espalmadas na embalagem. Havia tules feminis há muito procurados. Comprei. Dois pares de meias vieram. Um corpete de cetim, que o século dezoito não desdenharia, piscara o olho desde a entrada. Não cometi a desfeita de o abandonar pendurado. Papel reciclado como matéria do saco-embrulho. Espiga atada com ráfia honrou o dia que a comemorava.

Um objecto é, em si mesmo, inocente. A obscenidade está nos espíritos e nos actos que os preconceitos, a perversidade ou a cobardia toldam.

‘Teresa Castro’

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