terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Memórias sentimentais

Quem não conserva sua grande paixão? Ou suas grandes paixões? A paixão pelo cinema, pelo homem, pelos filhos, pelos pais, pela poesia, pela paisagem, pela mulher. Múltiplas paixões, pois o homem só as reduz, ou as anula, ou não as conhece, quando a fome, a miséria, a doença, são suas companheiras.
Revendo memórias sentimentais que nunca escrevi - a não ser em guardanapos de bar e papéis “malucos” -, confesso ser difícil o coexistir de ter o prato na mesa e de saber de muitos que nada têm. Briga-se, fala-se, discursa-se, analisa-se por tão pouco, por um tal, ou uns tais de poderes, que até memórias sentimentais ou novos sentimentos são postos no cesto de lixo mais próximo.
Muitos estão trocando a capacidade da paixão pela febre do poder (seja político, religioso, empresarial, sexual ou mero medir de força física). Mas, as memórias sentimentais continuam ao redor de todos nós, carregando a certeza de que nos derrubarão na melhor esquina. Quando alguém de pleno poder é derrubado, ótimo; nada melhor que uma queda quando se faz de um mero gabinete o mundo visto por Napoleão de cima de uma pirâmide.
Muitos sexos nos contemplam e as memórias sentimentais a todos tiram “de letra”. Quanto a mim, essas memórias podem atacar com Bernstein regendo a “Rhapsody in blue”, Joe Cocker cantando “With a little help from my friends” para a bela nação de Woodstock e, mais pra cá, Herbert Vianna na envolvente “Lanterna dos afogados”.
Sempre (novamente) as paixões
Nada como a música e a natureza como companhia das paixões. Alceu Valença cantando “o girassol dos teus cabelos”. Lennon e McCartney derramando “Yesterday”. Português ou inglês, tanto faz. Paixão não tem língua. Pode ser ouvida e entendida sem dicionário. E “se branco ele fôr, esse canto de amor”, como induz Geraldo Azevedo? E Fagner entre “Revelação” e “Deslizes”? E Caetano Veloso, cantando que “sobre toda a estrada paira a monstruosa sombra do ciúme”?
Não esqueço a exaltação de Gilberto Gil em “Super Homem - A canção”, pedindo que o herói venha “nos restituir a glória, mudando como um deus o curso da história por causa da mulher”. Ou Dorival Caymmi dizendo que Marina já é bonita “com o que Deus lhe deu”.
Por natureza, eu que sou um pisciano prematuramente apaixonado, não posso negar que, como indicou Alceu em “Anunciação”, “já conheço os seus sinais”.
A paixão tem sinais que as companhias de trânsito não localizam. Em seus maiores momentos, a paixão ultrapassa os sinais. Ela não vê verde, nem amarelo ou vermelho. Para a paixão existe a soma de todas as cores, ou cor nenhuma.
Lembro o flautista sagrado da mitologia hindú do “Gitá Govinda”. Todas as posições da paixão são para o flautista como figuras de dança. Por isso, grande balés - de Moscou a Nova Iorque - têm representado “Romeu e Julieta”. Por falar nisso, Shakespeare foi um dos autores que mais se dedicaram às paixões.
De todos os mitos da Índia, o mais belo sem dúvida é o de Krishna, que desce à floresta em meio às pastoras. O pastor celeste perde-se no bosque, encantando com o som de sua flauta animais, demônios e mulheres. As ternas pastoras circulam ao seu redor. O Deus que é onipresente satisfaz ao mesmo tempo suas mil amantes; cada uma o tem para si só e todas o têm inteiro. É um símbolo das núpcias da alma com Deus.
Voltando a Shakespeare, ele dizia que “não há nada de bom ou de mau, a não ser que o pensamento o torne assim”. Traduzindo: nenhuma paixão é boa ou má, a não ser que os amantes a tornem assim.
- “Carlos Aranha” -

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