Podia ter trinta anos, mas talvez não passasse dos quinze. A natureza vencida pela droga barata desfigurava o que lhe restava de graça – na verdade, era quase impossível que um dia pudesse ter sido bela.
Não levava à boca a primeira e última refeição do di. Aspirava-a pelos lábios entreabertos. Alimentava-se toda, de corpo, alma e destino de cola de sapateiro.
Movia-se com a dificuldade de quem caminha num charco de nuvens. Era como se flutuasse, porem até o ar que a sustentava parecia viscoso e espesso, feito uma gelatina pesando nos gestos em slow-motion, na fala quando se muda, no olhar de abismo.
Aproximou-se do homem que apareceu à porta da loja de discos decorada para o Natal e pronunciou a fórmula clássica de pedir, sem tirar a garrafa de plástico da boca. Estipulou quanto. Custava cinco reais a sua tragédia. Não faria por menos. Embora não dissesse com estas palavras, era assim que devia ser entendido.
Cada pena com seu preço.
O homem recusou-se a dar dinheiro, mas tomou-a pelo braço e se dispôs a pagar-lhe a comida. No fim da calçada, havia um quiosque onde ele encomendou um sanduíche, mais um coxa de galinha, além de um refrigerante.
A mulher quase menina livrou-se da caridade inesperada e incomoda do desconhecido aplicando-lhe um vigoroso safanão.
- O que você quer? – perguntou, quase gritando.
- Eu não quero nada. Mas se tivesse de querer, pediria que parasse de se matar.
O pântano de nuvem debaixo dos seus pés aparentemente ficou mais pastoso, fazendo-a cambalear.
- Você é pastor?
- Não.
- Então quer me levar pra cama...
- Também não.
Olhou o sanduíche no prato, mas demorou mesmo a contemplação no semblante calmo do homem de meia idade, que já se virava, em volteio de arribação.
Finalmente, ficou só outra vez. O alento que o mundo lhe oferecia vinha da garrafa, como o sopro mágico de um demônio particular que ela levava colado aos lábios, num beijo terminal.
Depois disso, deixou-se ficar sentada li, no meio-fio, vendo passar o resto da humanidade sumariamente dividida entre pastores remotamente empenhados em levá-la à presença de Deus e a outra metade apenas interessada em levá-la para a cama.
Refugada pela sorte, agora não queria mais a companhia de uns nem de outros. Restava-lhe tão somente, o aconchego do demônio que trazia consigo numa garrafa de plástico.
Na loja de discos, um trompete anônimo agora executava um solo de Noite Feliz.
“Luiz Augusto Crispim”
sábado, 19 de janeiro de 2008
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