sábado, 19 de janeiro de 2008

UM OLHAR DE ABISMO

Podia ter trinta anos, mas talvez não passasse dos quinze. A natureza vencida pela droga barata desfigurava o que lhe restava de graça – na verdade, era quase impossível que um dia pudesse ter sido bela.
Não levava à boca a primeira e última refeição do di. Aspirava-a pelos lábios entreabertos. Alimentava-se toda, de corpo, alma e destino de cola de sapateiro.
Movia-se com a dificuldade de quem caminha num charco de nuvens. Era como se flutuasse, porem até o ar que a sustentava parecia viscoso e espesso, feito uma gelatina pesando nos gestos em slow-motion, na fala quando se muda, no olhar de abismo.
Aproximou-se do homem que apareceu à porta da loja de discos decorada para o Natal e pronunciou a fórmula clássica de pedir, sem tirar a garrafa de plástico da boca. Estipulou quanto. Custava cinco reais a sua tragédia. Não faria por menos. Embora não dissesse com estas palavras, era assim que devia ser entendido.
Cada pena com seu preço.
O homem recusou-se a dar dinheiro, mas tomou-a pelo braço e se dispôs a pagar-lhe a comida. No fim da calçada, havia um quiosque onde ele encomendou um sanduíche, mais um coxa de galinha, além de um refrigerante.
A mulher quase menina livrou-se da caridade inesperada e incomoda do desconhecido aplicando-lhe um vigoroso safanão.
- O que você quer? – perguntou, quase gritando.
- Eu não quero nada. Mas se tivesse de querer, pediria que parasse de se matar.
O pântano de nuvem debaixo dos seus pés aparentemente ficou mais pastoso, fazendo-a cambalear.
- Você é pastor?
- Não.
- Então quer me levar pra cama...
- Também não.
Olhou o sanduíche no prato, mas demorou mesmo a contemplação no semblante calmo do homem de meia idade, que já se virava, em volteio de arribação.
Finalmente, ficou só outra vez. O alento que o mundo lhe oferecia vinha da garrafa, como o sopro mágico de um demônio particular que ela levava colado aos lábios, num beijo terminal.
Depois disso, deixou-se ficar sentada li, no meio-fio, vendo passar o resto da humanidade sumariamente dividida entre pastores remotamente empenhados em levá-la à presença de Deus e a outra metade apenas interessada em levá-la para a cama.
Refugada pela sorte, agora não queria mais a companhia de uns nem de outros. Restava-lhe tão somente, o aconchego do demônio que trazia consigo numa garrafa de plástico.
Na loja de discos, um trompete anônimo agora executava um solo de Noite Feliz.

“Luiz Augusto Crispim”

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