terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Sete poemas familiares

Carne de Pescoço
Zé Ramalho

POEMA UM

as pestanas do braço do violão
dormem sob as cordas em letargia
vindas do som das flêrpas macias
despertam sob os trastes / abandonados
vividos e pressionados em posição dúbia
reinventam armações
conhecem o tato do seu dono
dedos encerram tonantes medonhos
e o bojo do seu violão
estômago feito em madeira
e o desempenho das mãos
gemeram quando ecoaram
respondendo à fricção faiscante
do raio-aço inoxidável
primas / irmãs / bordões e mães d'água.

POEMA DOIS

escrever para a mãe
como quem escreve para o início
para a origem do primeiro sopro
para as carnes que me envolveram
em meu corpo pleno de plasma
escudo cama e o teto
quando tudo era de cristal
mulher de ferro / derretida em fogo
lava cuspida em dor e cor
estaticamente parada / de pé
escorrega e espera-me
que um vulto passe e lhe toque
sua epiderme metálica e macia
rígido olhar de procuras
mordidas de átomos
alquímicas e nuas
suas duras paixões
e os movimentos quebraram
dunas e arestas do estômago
que a mim tão bem me cabiam.

POEMA TRÊS

meus passos são meus amigos
meus passos são inimigos
do chão que não caminhar

moleques de rua
garotos de pele nua
molambos de se lavar

de fato são companheiros
foram oleiros
do barro que eu não pisei

quando anoitece
desentristece pelas pedras
e pelas as matas
o calcanhar impossível
e invulnerável do sertão
convidando-me a cavalgar
no teu dorso desmontado
como peças brilhantes
de automóveis acidentados

luminosos desastres
jogaram no meio da noite
o que jorrou da tua boca
inexplicavel segredo

os dentes da madrugada
trincaram teu desamor
morderam tua chegada
marcaram eu pecador

a lâmina quente do sol
cortou a sombra do dia
e um silêncio pousou
nas trevas secas do dia.

POEMA QUATRO

como será impossível
esconder no pensamento
quando pela medida linear do metro
eu estou racionalmente longe de você

quando pela medida estranha do insólido

eu estou perto e até dentro de você
sentindo as emoções que te movimentam
e que passeiam e dormem
dentro de mim / todos os dias

como cordinhas transparentes
como encontros revitalizantes
como comida / como alegria / como bebida

como no sono
faço parte da tua coluna vertebral
estás nos meus cabelos e pernas
encontro tua luz nas íntimas pedras
e com a impressão digital do espírito
como o despertar dessas coisas
de todas as coisas do início
do comêço do primeiro movimento
das sinfonias

do gen
do grão
e do grande.

POEMA CINCO

faz um ano que João respira
um resfolego como o do fole
remexendo / procurando / escutando
aprendendo tudo o que lhe provoca
ressonando em sonhos
pedaços de estrelinhas
que terminam em choros de amor

sua luz veio de um poço de cor
mais ensina que mais aprende
permanece nos brilhos do ser
que responde nas suas entranhas
a final carne filho da mãe
com desenhos do símbolo pai
representa um terço de todas as coisas
um terço rezado como se fosse novena

o resto é a soma do que tem que ser seu

desenvolver essas partes
conforme a sua história / conforme a memória
conforme a novena / e a graça alcançada

e o próximo passo
será dado na frente
daquilo que se entreolha
à reta que parte da íris
no sentido vasto / de qualquer direção.

POEMA SEIS

hildebrando / brando como mãe
calmo como um beijo de amor / não de paixão
amigo / pássaro sem hora
de voar quando quiser ir e voltar
gôndola de leme plácido
superficie de cisne / quase inundou
a fala pelo rio antigo / quase acertou
a verdadeira entidade desse pacificador

é o cacique
que leu a carta / que é teu amigo
és solitário / és caçador
admirável homem / és salvador

aquela história do primeiro homem
que por sua vez
aqui chegou e começou tudo
devem ter sido iguais
a tua doida bonança
de querer tanto bem ao próximo
coisa rara de ter hoje em dia
comungantes nessa profissão

POEMA SETE

na tarde antiga
a criança e o jovem
cuidavam das rugas
dos seres mortais

pois há nos anúncios
dos seus ancestrais
uma doença que corre
por frente e por trás

o homem que fica
na tábua oscilante
constrói o instante
esquece a altura

retém a vertigem
não morre de medo
do mestre de obras

por entre os morros
da guanabara espremem-se
as colméias de cimento

o recorte cinza da paisagem
nesses relevos de pedra e sonho
sufocam os beijos dos namorados
trocados em plena praça pública

os namorados existem
as abelhas existem
o mel adoça
o beijo é doce

a rainha é solitária
e o sol prossegue sua rotina diária
sem saber mais para onde ir

poderia seguir calmamente
sua pegada de fogo
mas minha cabeça
não cabe nesse pacote
nem a lua também
me mostraria seus pudores frios

então só me resta
olhar a densa neblina
desses olhos que bem poderiam ser
os olhos do próprio Deus.

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